PROCURANDO ENTENDER A ÍNDIA
(a respeito da novela da Globo)
A ORIGEM DAS CASTAS
A primeira coisa a fazer ao se tentar entender aspectos de outra cultura é procurar acessar o que se quer avaliar através da perspectiva da própria cultura em questão, considerando e respeitando todo o complexo leque de características e peculiaridades históricas, culturais, religiosas etc, inerentes a esta cultura.
Assim, para entender o sistema de castas da Índia temos que considerar primordialmente que toda a cultura Hindu se constrói sobre o conceito, o paradigma da reencarnação.
A idéia central é que a sociedade é como um organismo, um corpo. E um corpo tem diversas partes e funções, assim como a sociedade. E a reencarnação é a dinâmica que vai movimentando e desenvolvendo o corpo social através do trânsito dos espíritos em evolução através de suas encarnações nas diversas castas. Então os Brahmanes (os sacerdotes) seriam a cabeça pensante da sociedade, os Kshatriyas (militares e políticos) seus braços protetores, os Vaishyas (agricultores, industriais e comerciantes) o tronco nutridor, e os Shudras (operários, camponeses, empregados), as pernas serviçais.
Originalmente, a função de um Brahmane seria fornecer subsídios éticos, morais, culturais, educacionais, filosóficos e religiosos, para que as castas inferiores pudessem ir evoluindo. Os Brahmanes não deveriam extrapolar suas funções e seu poder, porque sabiam que no passado já tinham sido Shudras, Vaishyas e Kshatriyas. E os membros das castas inferiores não deveriam ter inveja ou raiva das castas superiores, pois sabiam que não só eles um dia também serão Brahmanes, como também sabiam que os Brahmanes já tinham passado pelas outras castas, em outras vidas.
E o mais interessante é que originalmente o critério que determinaria a casta de alguém não era necessariamente o do nascimento. Em principio, um filho de Brahmane era um Brahmane, mas teria que provar sua qualificação, podendo ter que se re-estabelecer em uma casta abaixo.
Mas paradoxalmente a isto, foi o sistema de castas quem influiu bastante para que a Índia se mantivesse coesa e íntegra enquanto cultura e espiritualidade, ao longo de diversas invasões e colonizações. Vamos ver o que vai acontecer agora com a “colonização” global.
Pessoalmente, realmente não sei se este sistema, em sua forma original e autêntica, algum dia funcionou, antes de se estratificar e se deturpar, gerando o que até hoje ainda persiste. Na época de Buddha, há mais de 2500 atrás, os Brahmanes já formavam uma casta totalmente poderosa e absolutamente fechada em sua posição superior.
OS DALITS
Existem duas teorias sobre o surgimento da cultura védica na Índia. A mais conhecida diz que os Arianos (povo de pele mais clara, predominante no norte do país) invadiram a Índia há milênios atrás, vindos do oriente médio, e conquistaram o povo que lá vivia (chamados de Dravidianos - pessoas de pele escura, mais predominantes hoje no sul da Índia) implantando a cultura védica, que acabou se misturando com a espiritualidade existente (chamada de Tantrismo), gerando o que os ingleses chamaram de “Hinduísmo” – e que os hinduístas chamam de Sanathana Dharma, a Religião Eterna.
Os Dalits - ou sem casta, ou ainda, intocáveis - seriam os remanescentes destes dravidianos conquistados e excluídos.
A outra teoria, mais moderna, tenta provar que tanto Arianos como Dravidianos se desenvolveram na própria Índia, não tendo havido nenhuma invasão no passado.
No passado, um Dalit não podia tocar a sombra de um Brahmane. O Brahmane se considerava contaminado e tinha que tomar banho, trocar de roupa, fazer orações...
Hoje, existem Dalits ricos e influentes, como a governadora de Uttar Pradesh e o presidente da Suprema Corte, mas grande parte dos 160 milhões de Dalits ainda vive em situação de extrema pobreza.
Uma curiosidade: Mahatma Gandhi, sempre viajava pela Índia e tinha que pernoitar em alguma cidade, procurava saber onde era o bairro dos intocáveis, e lá dormia.
A SITUAÇÃO DAS MULHERES
Esta questão também tem que ser olhada através da lente da própria cultura indiana. Há milênios eles lidam amplamente com temas como sexualidade, paixão, desejo, sensualidade, tudo muito misturado com outros temas como Espiritualidade, Religião, Filosofia e Mitologia.
A cultura indiana, ao mesmo tempo que possui um sem numero de Escrituras Sagradas exortando a virtude e a importância do celibato, tem também toda uma cultura tântrica, que utiliza a energia sexual para o desenvolvimento espiritual. E tem ainda um livro, o Kama Sutra, que é um verdadeiro tratado – e altamente sofisticado - do prazer sensual e sexual.
Podemos, então, observar muitos costumes que aos nossos olhos são estranhos, incoerentes e paradoxais: na Índia a mulher era considerada inferior ao homem (algumas seitas chegam a considerar a mulher 7 vezes inferior ao homem, e outras consideram a mulher como sendo uma casta inferior): comia depois dos homens, não falava se não fosse perguntada, andava atrás do homem na rua, além de ter que – no passado - se imolar na pira do marido.
Por outro lado, é ela quem tem a chave da casa e da despensa, e que, quando o marido recebe o salário, recebe tudo de suas mãos. Ou seja, a esposa é quem realmente manda em tudo na casa. Assim, ao mesmo tempo em que a mulher é considerada inferior – algumas linhas afirmam até que a mulher não pode se iluminar - ela é a própria expressão humana da Mãe Divina.
Os casamentos tradicionalmente pré-arranjados, são a forma de se perpetuar o sistema de castas e toda a antiga estrutura social e religiosa. Mas achei interessante quando eles falam que “no ocidente o casamento começa quente e depois esfria, e na Índia começa frio e vai esquentando”. É uma outra perspectiva da vida afetiva e sexual.
Um outro costume, é o fato de que tradicionalmente toda a família mora junta. A mulher quando casa, claro, vai morar na casa dos sogros onde normalmente não é muito bem tratada inicialmente, e onde a maior prova de respeito e consideração, é receber da sogra a chave da despensa.
O fato é que o ocidente e seus costumes estão entrando rápida e expansivamente na Índia, remexendo com a velha estrutura, pois assim como também acontece com as nações indígenas sul e norte americanas, os jovens não estão querendo mais seguir as tradições, e os costumes e hábitos mais antigos vão sendo preservados cada vez mais apenas nas zonas rurais.
OS IDOSOS
Os velhos no Oriente são tratados de forma muito mais respeitosa e justa do que entre nós ocidentais. Nas culturas antigas (isso vale, por exemplo, para orientais, os africanos e os índios), onde o principal veículo do aprendizado era a tradição oral, os velhos tinham uma importância enorme, tanto na manutenção da cultura e da espiritualidade quanto na própria sobrevivência física. Era o ancião quem passava todo o “know how” da ciência prática da perpetuação da espécie e da cultura. Na Índia, e acredito que em muitas outras culturas antigas, o melhor aposento da casa é sempre para a pessoa mais velha. E a palavra final é sempre da pessoa mais idosa.
Pessoalmente, penso que uma pessoa idosa deveria ter três coisas para compartilhar com a gerações mais jovens: a experiência da vida, os conhecimentos e a Sabedoria.
Experiência da vida, ou vivência, é aquele tipo de conhecimento fruto do tempo cronológico vivido. Ou seja, basta ser velho para ter experiência da vida. E este tipo de conhecimento nivela, por exemplo, o catedrático e o peão da roça.
Conhecimentos, acúmulo de informações, cultura, técnicas e habilidades, todos os idosos também têm, cada um na sua área de atuação e de interesses.
A terceira qualidade, que chamei de Sabedoria, é um tipo de conhecimento oriundo de uma vida inteira dedicada – conjuntamente com a vida rotineira - ao exercício da tarefa mais importante do ser humano : sua jornada rumo à realização da sua natureza real. Este exercício, que é tão comum aos universos oriental e xamânico, por exemplo, não teve muito eco em nossa cultura. Parece que tudo o que nossos velhos podem nos dar hoje são os testemunhos da sua vivência e muitas informações e conhecimentos, o que obviamente é maravilhoso.
Mas a Sabedoria foi relegada a um plano secundário pela cultura ocidental que só privilegiou a mente racional, e não fez da Iluminação a meta principal da existência. Hoje, em nosso mundo hi-tech globalizado, descartável, competitivo e de alta velocidade de obsolescência, a vivência e os conhecimentos práticos dos velhos já não são mais considerados preponderantes para a preservação física, cultural e espiritual da nossa espécie. E como falta aos idosos ocidentais esta Sabedoria atávica e ancestral, característica de culturas que se dedicaram durante milênios às questões mais primordiais da existência - “quem somos, de onde viemos, e para onde vamos” - vemos nossa cultura tratar muito mal os idosos.
É interessante reparar como os índios, os japoneses, os indianos, os chineses e os islâmicos cultuam e reverenciam os antepassados. Com gratidão, respeito
CRIANÇAS e EDUCAÇÃO
Gostaria de compartilhar uma interessantíssima conversa que tive com uma mãe indiana, numa situação onde tinham crianças brincando perto e a conversa acabou caindo em educação. Percebi que esta mulher (que era PhD em economia) muito tímida e educada, não estava expressando sinceramente a sua opinião. Acabei insistindo e ela, bastante envergonhada, disse: “Vocês criam suas crianças enfatizando os seus defeitos”.
Uma luz acendeu e perguntei como isto acontece em seu país, e ela deu um exemplo prático mostrando as crianças que brincavam: “Por exemplo, se uma criança exibe um comportamento de ter dificuldade em compartilhar, arranca os brinquedos dos outros, bate, não empresta o dele, o que vocês fazem normalmente? Gritam (com raiva) dizendo que a criança é egoísta, pão dura, enfatizando e registrando mais ainda a característica em questão. Isso quando não a colocam de castigo ou batem...”.
Acrescentou que procuraria habilmente criar uma brincadeira, uma situação qualquer onde a criança tivesse que compartilhar e assim percebesse que era bom o dividir, o partilhar. Assim, o que eram tendências de defeitos ainda em formação (que os hindus chamam de Vasanas, que são formadas por Samskaras, registros psico-emocionais oriundos das experiências vividas), poderiam ser re-polarizadas (ou re-significadas) nas qualidades e virtudes opostas. Interessante, não?
Mais interessante ainda, foi que eu contei esta história para uma amiga, que tempos depois foi passar um período em uma tribo indígena no centro do Brasil, e na volta me contou, bastante impressionada, que ela havia visto acontecer entre os índios brasileiros, aquilo que a indiana falara.
Em algum momento haviam crianças brincando, mulheres tomando conta, alguma criança manifestou algum “defeito” e logo as índias criaram uma brincadeira para curar a criança de que poderia ser um futuro padrão desequilibrado de comportamento.
Hoje sou muito grato ao Universo por ter tecido o meu encontro com estas duas grandes Tradições: o Hinduísmo e o Xamanismo. Isto mudou radicalmente o meu padrão de relação com meus filhos e com meus pais, e norteou para mim a possibilidade de uma via de envelhecimento muito mais plena e saudável.
PORQUE UMA NOVELA SOBRE A ÍNDIA?
Os anos 60 e 70 assistiram a uma espécie de (re)nascimento do Oriente no mundo ocidental. A geração beat e o movimento hippie começaram a importar da Índia e da China um universo que viria a “contaminar” profunda e positivamente nosso mundo cristão/capitalista. Parece que a Gaya - a Consciência Planetária - sentindo a imensa situação de desequilíbrio ambiental e humano pela qual a Terra atravessa, achou interessante que conhecimentos ancestrais, milenares, pudessem vir novamente à tona para que pudessem contribuir para a reversão do preocupante quadro mundial.
Hoje todo mundo, de alguma forma, já ouviu falar ou já experienciou alguma vez Yoga, Shiatsu, Meditação, Acupuntura, Tai Chi Chuan, Feng-Shui etc, ou já ouviu falar de Chakras, Zen, Macrobiótica, Ayurveda, Budismo etc. Enfim, passados mais de 40 anos, o universo oriental se integrou perfeitamente – e ainda está se expandindo – ao ocidental.
Uma novela em horário nobre da Rede Globo sobre a Índia é, com certeza, uma constatação da integração crescente entre estas duas culturas. O que antes era cultuado por alguns pequenos grupos de adeptos do Yoga e da meditação, agora está na grande mídia.
A grande mensagem e a principal contribuição – dentre muitas - que o Oriente veio nos trazer, foi a idéia da Unidade. A perspectiva de que o Universo, a Criação, é um só Organismo, um só Ser, totalmente inter-relacionado, interligado, integrado, interagente, interdependente, totalmente consciente, infinito e eterno. Uma grande teia onde cada infinitesimal partícula sub-atômica e cada gigantesca galáxia é consciente e inteligente. Onde cada elemento desta imensa rede, além de estar interconectado com toda a rede, também funciona como um imã, que fica constantemente, magneticamente, atraindo e repelindo coisas e situações num movimento sincrônico e ressonante de permanente evolução, de contínua (re) criação da Realidade.
Como disse C. G. Jung em 1949, no prefácio do livro “I Ching”, de R. Wilhelm: “O pensamento tradicional chinês apreende o cosmos de um modo semelhante ao do físico moderno, que não pode negar que seu modelo do mundo é uma estrutura decididamente psico-física”.
Esta mudança de perspectiva trouxe um novo alento à péssima autoestima a que a religião vigente nos condicionou. Agora temos a informação de que não somos mais vis pecadores e culpados congênitos que dependem da misericórdia divina de um Deus que habita um paraíso distante, para podermos vir a ser algo que ainda não somos. E que também, além de não sermos culpados de nada (nem vítimas de nada nem de ninguém), não somos o produto final “top de linha” da Criação, e nem a Terra foi criada prioritariamente para nosso uso exclusivo, como se fosse um grande shopping center à nossa inteira e ilimitada disposição.
O novo paradigma vem nos (re)informar que, na verdade, já somos a Perfeição, a Plenitude e a Felicidade que buscamos. Nossa essência primordial é o Uno, a pura Luz e o puro Amor. Nós só estamos míopes, ignorantes dessa realidade. Só temos que resgatar a consciência de que somos todos co-criadores e corresponsáveis pela Vida, de que somos “partes” desse Todo consciente e vivo que é a Criação, o Universo. (É bem melhor ser ignorante do que culpado e pecador, não?)
Outra grande contribuição trazida do Oriente foi o resgate da Energia. Da Energia Vital (Prana, Chi, Ki) em suas mais diversas manifestações, que sustenta o Universo. E também que podemos, de muitas formas e maneiras, instrumentalizá-la e utilizá-la em nosso favor, para nossa evolução e crescimento.
Passados 40 anos, o universo oriental se integrou perfeitamente – e ainda está se expandindo – ao universo ocidental. Hoje todo mundo, de alguma forma, já ouviu falar ou já experienciou alguma vez Yoga, Shiatsu, Meditação, Acupuntura, Tai Chi Chuan, Feng-Shui, ou já ouviu falar de Chakras, Zen, Macrobiótica, Ayurveda, Budismo”.
A partir do universo aberto pelo Oriente, muitos caminhos se desdobraram, cresceram e multiplicaram (inicialmente através dos beatniks e dos hippies), como a consciência e o movimento ecológico, as terapias alternativas, a agricultura orgânica, a alimentação natural, o espiritualismo e o esoterismo em geral. Tudo agora já bastante inserido em nosso universo urbano e globalizado, trazendo no seu cerne uma nova visão de mundo holística e integrativa.
Paralelamente a estes acontecimentos, a Ciência também já vinha sacudindo seus velhos paradigmas, com a expansão da Física Quântica (que veio e vem corroborando e respaldando o que os orientais e os xamãs vêm dizendo há milênios) e da Psicologia, através principalmente da Psicologia Transpessoal, que vem agregando outras possibilidades de compreensão da mente e da vida, resgatando a utilização das inúmeras ferramentas de cura e de expansão da consciência das antigas Tradições.
sábado, 22 de maio de 2010
quarta-feira, 12 de maio de 2010
ORTODOXOS E HETERODOXOS
ORTODOXOS e HETERODOXOS
Compatibilizando os aparentes opostos
Ao longo da história da Humanidade, mais especificamente no que se refere ao desenvolvimento e desdobramento do Conhecimento no planeta (e isso acontece, por exemplo, no âmbito da Ciência, das Religiões, da Filosofia e da Psicologia), parece que duas correntes de pontos de vista diametralmente opostos caminham lado a lado, paralelamente, ao longo das eras. Vou chamar uma destas correntes de “ortodoxia” e a outra de “heterodoxia”.
O ortodoxo, neste caso, é aquele que segue uma determinada linha, uma única Escola ou uma Tradição específica. É o guardião de uma versão, um ponto de vista – religioso ou filosófico - específico sobre Deus, sobre o homem e/ou sobre a Vida e seu funcionamento.
A função do ortodoxo é manter a tradição, a essência do Conhecimento, viva e protegida. Zelar pela manutenção da pureza e da originalidade do Conhecimento que é o seu patrimônio cultural, científico ou espiritual.
O heterodoxo é aquele que não necessariamente pertence especificamente a alguma Tradição ou Escola (mas que também pode pertencer ou ser simpatizante de várias), e é quem integra caminhos e faz pontes entre Tradições (são inumeráveis as conexões possíveis entre as Religiões, ou por exemplo, entre a Física Quântica, os Conhecimentos Oriental e Xamânico e a Psicologia).
Uma das características da heterodoxia é fazer releituras, adaptações, reformas. Pode-se até ser um heterodoxo dentro da ortodoxia como, por exemplo, de uma certa forma o foram São Francisco de Assis e Santa Teresa D’Ávila no Catolicismo...
A função do heterodoxo é atualizar, reciclar, reformar, re-significar, reler, reinterpretar, adaptar e re-integrar. A atitude do heterodoxo é geralmente eclética (e muitas vezes sincrética), não-dogmática, não-sectária e ecumênica.
É como um corpo que se movimenta dinamicamente em torno de um eixo firme.
Isto acontece, por exemplo, na India, no caso dos Vedas, que é a espinha dorsal do que se convencionou chamar de Hinduísmo (palavra que na versão “hindu” se chama Sanathana Dharma, a Religião Eterna). E em torno dos Vedas orbitam centenas, milhares de linhas, filosofias, seitas, escolas, etc. muitas delas diametralmente antagônicas em sua teologia, mitologia, filosofia, cultos, etc. e que se degladiam há milênios em complexas especulações filosóficas, todas apoiadas por milenares escrituras, mas simultâneamente todas elas unidas em torno do eixo central que são os Vedas.
Se houvesse apenas a ortodoxia, o Conhecimento se enrijeceria, congelaria, não se reciclaria e assim, não conseguiria atravessar os milênios de mudanças incessantes. E se houvesse apenas a heterodoxia, o Conhecimento também não atravessaria as eras, pois sem um “espírito da coisa” bem estruturado como centro e eixo de um processo de crescimento, não haveria nem o que ser reciclado. Não haveria substância.
Já que falei dos Vedas, é bom lembrar que o corpo central destas escrituras se divide em duas partes: uma, o Shruti, que são as escrituras reveladas, canalizadas, essência central, nuclear e imutável de todo o Hinduísmo. É a parte mais ortodoxa dos Vedas.
A outra, o Smriti, que são as escrituras comentadas, que se por um lado, em função da sua antiguidade, também são consideradas ortodoxas, tiveram a tarefa de reler, interpretar e atualizar o Conhecimento.
Todo o Yoga que se pratica hoje no ocidente é fruto de uma atitude heterodoxa de alguns Mestres de Hatha Yoga nos séculos 19 e 20, que atualizaram e adaptaram antigos conhecimentos de Hatha Yoga, Raja Yoga e Tantra Yoga, e que era destinado aos monges e ascetas. De repente milhares de ocidentais começaram a afluir aos Ashrams na Índia e o Hatha Yoga, que originalmente era ensinado por um Guru à poucos discípulos na floresta ou nas montanhas, teve que ser adaptado para este sistema que conhecemos, em academias e com turmas com horários.
E essa é a grande beleza do funcionamento disso tudo: um não pode prescindir do outro, são totalmente complementares, embora muitas vezes pensem que são antagônicos.
Até porque, o heterodoxo de hoje é o ortodoxo de amanhã (que será devidamente reatualizado pelos heterodoxos de então...), e é assim que o Conhecimento caminha através dos tempos.
Mas o fato é que a convivência destas duas vias de ser e de pensar nem sempre (quase nunca) foi harmônica.
Normalmente os ortodoxos têm uma tendência a se referir aos heterodoxos como irresponsáveis e levianos que fazem uma salada (ou uma “mistureba”) de caminhos e tendências, inventando coisas, fazendo “samba do crioulo doido”, “viagem na maionese”, etc...
E os heterodoxos, por sua vez, tendem a se referir aos ortodoxos como conservadores, intolerantes e radicais (e eventualmente fanáticos).
Obviamente que nem todo heterodoxo é picareta, e nem todo ortodoxo é xiita. Em nome da ortodoxia e da heterodoxia já se fizeram muitas maravilhas e também muitos absurdos.
O rabino Nilton Bonder se refere aos heterodoxos, em seu excelente livro “A alma imoral”, como aqueles que “traem” e transgridem as regras estabelecidas. Se as regras e conceitos não fossem transgredidos, e assim, repensados e atualizados, não sobreviveriam a incessante mudança dos tempos.
Vivemos tempos onde outras culturas entraram e têm entrado profundamente em nossa cultura. Assim foi com as culturas chinesa e a indiana a partir dos anos 60, e agora com as tradições xamânicas e nativas.
Uma atitude ortodoxa é muito necessária para resgatar e manter culturas e conhecimentos muitas vezes quase extintos.
Mas mais do que nunca o planeta pede também uma atitude heterodoxa. Afinal, mesmo trilhando-se um só caminho, pode-se considerar que o do outro também é bom e verdadeiro.
Pode-se ser ortodoxo sem ser necessariamente o “dono da verdade”. O problema é quando a minha versão de Deus e da Vida começa ser a única verdadeira e a melhor para todo mundo ou quando considero a minha certa e as outras erradas.
Nós vivemos em uma situação de hiper-ortodoxia mundial. Vejam, por exemplo, todas as guerras e problemas de ordem religiosa. Vejam a medicina oficial, que não procura integrar outras terapias, aceitar paradigmas e parâmetros técnicos e filosóficos de outras culturas e épocas – que privilegiam, por exemplo, a prevenção das doenças e a reeducação da população. Uma atitude mais heterodoxa neste caso beneficiaria a própria medicina, em sua essência mais ampla, mas parece que a postura ortodoxa, no caso, prefere investir na cura das doenças, atividade muito mais lucrativa, claro.
Por isso vivemos a cultura da doença, e não da saúde, pois saúde não dá dinheiro, e as transnacionais dominam uma ideologia alopática, sintomática e reducionista de se lidar com saúde e com doença. Daí as intransigências, as interdições, as “caça às bruxas” que constantemente vemos acontecer com relação às práticas “não oficiais”.
O planeta precisa de uma atitude holística, animista e integrativa. E isso pode acontecer quando, primeiro as ortodoxias entre si, e depois a(s) ortodoxia(s) e a(s) heterodoxia(s), deixarem de se considerar antagônicas para operarem como complementares. Em outras palavras, quando deixarem de lutar por suas diferenças e passarem a compartilhar seus pontos em comum.
Compatibilizando os aparentes opostos
Ao longo da história da Humanidade, mais especificamente no que se refere ao desenvolvimento e desdobramento do Conhecimento no planeta (e isso acontece, por exemplo, no âmbito da Ciência, das Religiões, da Filosofia e da Psicologia), parece que duas correntes de pontos de vista diametralmente opostos caminham lado a lado, paralelamente, ao longo das eras. Vou chamar uma destas correntes de “ortodoxia” e a outra de “heterodoxia”.
O ortodoxo, neste caso, é aquele que segue uma determinada linha, uma única Escola ou uma Tradição específica. É o guardião de uma versão, um ponto de vista – religioso ou filosófico - específico sobre Deus, sobre o homem e/ou sobre a Vida e seu funcionamento.
A função do ortodoxo é manter a tradição, a essência do Conhecimento, viva e protegida. Zelar pela manutenção da pureza e da originalidade do Conhecimento que é o seu patrimônio cultural, científico ou espiritual.
O heterodoxo é aquele que não necessariamente pertence especificamente a alguma Tradição ou Escola (mas que também pode pertencer ou ser simpatizante de várias), e é quem integra caminhos e faz pontes entre Tradições (são inumeráveis as conexões possíveis entre as Religiões, ou por exemplo, entre a Física Quântica, os Conhecimentos Oriental e Xamânico e a Psicologia).
Uma das características da heterodoxia é fazer releituras, adaptações, reformas. Pode-se até ser um heterodoxo dentro da ortodoxia como, por exemplo, de uma certa forma o foram São Francisco de Assis e Santa Teresa D’Ávila no Catolicismo...
A função do heterodoxo é atualizar, reciclar, reformar, re-significar, reler, reinterpretar, adaptar e re-integrar. A atitude do heterodoxo é geralmente eclética (e muitas vezes sincrética), não-dogmática, não-sectária e ecumênica.
É como um corpo que se movimenta dinamicamente em torno de um eixo firme.
Isto acontece, por exemplo, na India, no caso dos Vedas, que é a espinha dorsal do que se convencionou chamar de Hinduísmo (palavra que na versão “hindu” se chama Sanathana Dharma, a Religião Eterna). E em torno dos Vedas orbitam centenas, milhares de linhas, filosofias, seitas, escolas, etc. muitas delas diametralmente antagônicas em sua teologia, mitologia, filosofia, cultos, etc. e que se degladiam há milênios em complexas especulações filosóficas, todas apoiadas por milenares escrituras, mas simultâneamente todas elas unidas em torno do eixo central que são os Vedas.
Se houvesse apenas a ortodoxia, o Conhecimento se enrijeceria, congelaria, não se reciclaria e assim, não conseguiria atravessar os milênios de mudanças incessantes. E se houvesse apenas a heterodoxia, o Conhecimento também não atravessaria as eras, pois sem um “espírito da coisa” bem estruturado como centro e eixo de um processo de crescimento, não haveria nem o que ser reciclado. Não haveria substância.
Já que falei dos Vedas, é bom lembrar que o corpo central destas escrituras se divide em duas partes: uma, o Shruti, que são as escrituras reveladas, canalizadas, essência central, nuclear e imutável de todo o Hinduísmo. É a parte mais ortodoxa dos Vedas.
A outra, o Smriti, que são as escrituras comentadas, que se por um lado, em função da sua antiguidade, também são consideradas ortodoxas, tiveram a tarefa de reler, interpretar e atualizar o Conhecimento.
Todo o Yoga que se pratica hoje no ocidente é fruto de uma atitude heterodoxa de alguns Mestres de Hatha Yoga nos séculos 19 e 20, que atualizaram e adaptaram antigos conhecimentos de Hatha Yoga, Raja Yoga e Tantra Yoga, e que era destinado aos monges e ascetas. De repente milhares de ocidentais começaram a afluir aos Ashrams na Índia e o Hatha Yoga, que originalmente era ensinado por um Guru à poucos discípulos na floresta ou nas montanhas, teve que ser adaptado para este sistema que conhecemos, em academias e com turmas com horários.
E essa é a grande beleza do funcionamento disso tudo: um não pode prescindir do outro, são totalmente complementares, embora muitas vezes pensem que são antagônicos.
Até porque, o heterodoxo de hoje é o ortodoxo de amanhã (que será devidamente reatualizado pelos heterodoxos de então...), e é assim que o Conhecimento caminha através dos tempos.
Mas o fato é que a convivência destas duas vias de ser e de pensar nem sempre (quase nunca) foi harmônica.
Normalmente os ortodoxos têm uma tendência a se referir aos heterodoxos como irresponsáveis e levianos que fazem uma salada (ou uma “mistureba”) de caminhos e tendências, inventando coisas, fazendo “samba do crioulo doido”, “viagem na maionese”, etc...
E os heterodoxos, por sua vez, tendem a se referir aos ortodoxos como conservadores, intolerantes e radicais (e eventualmente fanáticos).
Obviamente que nem todo heterodoxo é picareta, e nem todo ortodoxo é xiita. Em nome da ortodoxia e da heterodoxia já se fizeram muitas maravilhas e também muitos absurdos.
O rabino Nilton Bonder se refere aos heterodoxos, em seu excelente livro “A alma imoral”, como aqueles que “traem” e transgridem as regras estabelecidas. Se as regras e conceitos não fossem transgredidos, e assim, repensados e atualizados, não sobreviveriam a incessante mudança dos tempos.
Vivemos tempos onde outras culturas entraram e têm entrado profundamente em nossa cultura. Assim foi com as culturas chinesa e a indiana a partir dos anos 60, e agora com as tradições xamânicas e nativas.
Uma atitude ortodoxa é muito necessária para resgatar e manter culturas e conhecimentos muitas vezes quase extintos.
Mas mais do que nunca o planeta pede também uma atitude heterodoxa. Afinal, mesmo trilhando-se um só caminho, pode-se considerar que o do outro também é bom e verdadeiro.
Pode-se ser ortodoxo sem ser necessariamente o “dono da verdade”. O problema é quando a minha versão de Deus e da Vida começa ser a única verdadeira e a melhor para todo mundo ou quando considero a minha certa e as outras erradas.
Nós vivemos em uma situação de hiper-ortodoxia mundial. Vejam, por exemplo, todas as guerras e problemas de ordem religiosa. Vejam a medicina oficial, que não procura integrar outras terapias, aceitar paradigmas e parâmetros técnicos e filosóficos de outras culturas e épocas – que privilegiam, por exemplo, a prevenção das doenças e a reeducação da população. Uma atitude mais heterodoxa neste caso beneficiaria a própria medicina, em sua essência mais ampla, mas parece que a postura ortodoxa, no caso, prefere investir na cura das doenças, atividade muito mais lucrativa, claro.
Por isso vivemos a cultura da doença, e não da saúde, pois saúde não dá dinheiro, e as transnacionais dominam uma ideologia alopática, sintomática e reducionista de se lidar com saúde e com doença. Daí as intransigências, as interdições, as “caça às bruxas” que constantemente vemos acontecer com relação às práticas “não oficiais”.
O planeta precisa de uma atitude holística, animista e integrativa. E isso pode acontecer quando, primeiro as ortodoxias entre si, e depois a(s) ortodoxia(s) e a(s) heterodoxia(s), deixarem de se considerar antagônicas para operarem como complementares. Em outras palavras, quando deixarem de lutar por suas diferenças e passarem a compartilhar seus pontos em comum.
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